Simon Baron-Cohen - New Scientist, n. 2701 - 27/3/2009
Tradução de Argemiro Garcia
Quando a mídia publica reportagens dizendo que o cientista X ou a Universidade Y descobriram que A está relacionado a B, gostaríamos de ser capazes de acreditar nelas. Infelizmente, como muitos pesquisadores sabem, não podemos.
Isto tem três sérias consequências. Para os iniciantes, sempre que a mídia erra na divulgação da ciência, ela joga fora a credibilidade de ambos. Reportagens erradas podem ainda gerar pânico, quando as pessoas passam a temer consequências adversas das supostas novas relações entre A e B. Finalmente, pode haver um efeito danoso no comportamento dos pesquisadores. Agências financiadoras e instituições científicas encorajam os cientistas a se comunicar com a mídia, a manter o público informado sobre suas pesquisas e assim conseguir mais apoio. Se seus trabalhos são apresentados de forma errada, eles podem preferir ficar nos seus laboratórios em vez de se arriscar a ter de gastar muitas horas pondo as coisas em ordem.
Trabalho numa daquelas sensíveis áreas de pesquisa, o autismo, na qual os fatos são propensos a ser errradamente descritos ou – algumas vezes pior – mal interpretados. Nossos problemas recuam a 1998, com um artigo da revista The Lancet, de Andrew Wakefield e colegas, sobre o que lhes parecia uma relação entre o autismo e a vacina tríplice para sarampo, rubéola e caxumba. Pesquisas posteriores não sustentaram essa associação e assim, dado o grande risco potencial para a saúde pública se aumentasse a ansiedade dos pais a respeito da segurança dessa vacina – mais o fato de que com o tempo a maioria das pessoas pensaria que a mídia tinha errado – eu esperava que os jornalistas que tivessem responsabilidade relutariam em dar grandes coberturas à tal história da vacina-mais-autismo. Eu estava errado. A mídia manteve essa estória viva, apesar do fato de que as evidências que a apoiavam eram, na melhor das hipóteses, fracas ou até claramente contraditórias.
A história vacina-autismo talvez não seja um exemplo de má reportagem por si só mas, sim, de amplificação ou exagero; mesmo assim, seus efeitos têm sido sérios. Pais temerosos dos alegados perigos da vacina levaram a uma queda no número das crianças britânicas vacinadas abaixo do nível necessário para a "imunização de manada", com um consequente aumento perigoso dos casos de sarampo.
O que parece claro é que, para alguns pais de crianças com autismo, essa história lhes dá uma explicação conveniente do porquê seus filhos terem desenvolvido essa condição. Uma minoria se recusa a abandonar essa teoria, não só porque é difícil, se não impossível, desmitificá-la conclusivamente. Esses pais ignoram as contra-evidências e vêem os médicos que, como Wakefield, ainda defendem essa relação, como heróis solitários a brigar com o establishment, enquanto os pesquisadores que não estão fazendo estudos sobre a ligação MMR-autismo fariam parte de uma conspiração para esconder a verdade. Este drama é perfeito para jornais sequiosos de intermináveis histórias constrangedoras.
Minha experiencia pessoal com a má divulgação de pesquisa sobre autismo aconteceu em 12 de janeiro deste ano, quando um dos sérios jornais do Reino Unido, The Guardian, usou sua página principal para publicar uma reportagem sobre nossa novo estudo, editado pela revista British Journal of Psychology. Nosso trabalho mostrava uma correlação positiva entre os níveis da testosterona fetal (medida via amniocentese) e o número de "traços autistas" que a criança mostra após o nascimento. Eles não são necessariamente indicativos de autismo: crianças com autismo têm um alto número deles, mas todas as nossas crianças se desenvolveram "tipicamente" – isto é, elas não têm autismo.
O estudo acompanhou 235 crianças cujos níveis de testosterona fetal eram conhecidos porque foram medidos no líquido amniótico. É importante salientar que essas crianças não tinham autismo e que avaliou-se como eram social e comunicativamente, assim como o quão facilmente podiam mudar o foco de atenção, atentar para pequenos detalhes e gostar de ficção.
Embora os repórteres que escreveram o artigo tenham compreendido o escopo do estudo, isso não impediu os subeditores de redigir um título que erradamente anunciava: "Novas pesquisas trazem teste de autismo mais próximo da realidade", enquanto as linhas a seguir diziam, "Debate ético necessário devido aos testes pré-natais levarem à interrupção da gravidez". A primeira página ainda estampava a foto de um feto - uma imagem emotiva, destinada a prender o interesse de todos: militantes contra o aborto, pais (especialmente aqueles que esperavam filhos) e leitores curiosos sobre o que os cientistas estão fazendo aos bebês nesse estágio vulnerável. O que a legenda dizia? "A descoberta de um alto nível de testosterona em testes prenatais é um indicador de autismo."
Como principal autor do estudo, que nada tinha a ver com identificação de autismo, fiquei muito triste ao ver o título que a reportagem recebeu. A tristeza se tornou um choque, com a afirmativa de que altos níveis de testosterona prenatal seriam capaz de predizer se o feto desenvolverá autismo. Não foram estudados casos diagnosticados de autismo, apenas crianças com desenvolvimento normal. Não se descobriu que altos níveis de testosterona fetal predizem autismo: simplesmente foi descoberta uma correlação entre diferenças individuais nos níveis de hormônios (todos temos testosterona, alguns mais que os outros) e diferenças individuais na sociabilidade, habilidades de comunicação, atenção a detalhes, troca de foco de atenção e interesse em ficção. No jornal, estava errado. Lá, encontrei um artigo elocubrando sobre o estudo e o autismo, com o título "Disorder linked to high levels of testosterone in the womb" (Desordem ligada a altos níveis de testosterona no útero).
As grosseiras distorções nos títulos e legendas das figuras me forçaram a escrever ao jornal - que rapidamente concordou em publicar uma resposta minha. Digo "forçado" por duas razões. Recebemos, no centro de pesquisas, e-mails aflitos de leitores. Alguns se sentiam ofendidos porque a reportagem implicava que nossa pesquisa teria um sinistro propósito eugenista; não tem. Outros vinham de ansiosas mulheres grávidas que queriam ter acesso a este teste prenatal para descobrir se seus fetos desenvolveriam autismo; não existe tal teste.
Sinto que é importante deixar as coisas claras, não apenas porque nossa equipe gastou 10 anos nesse trabalho, com o consentimento das mulheres cujo líquido amniótico foi analisado e cujas crianças foram avaliadas. Definimos pacientemente o estudo para cumprir as severas exigências dos comitês de ética hospitalar. Depois do cuidado que quatro estudantes de PhD tiveram para analisar a delicada questâo de hormônios fetais afetarem ou não a mente e o cérebro, é como levar um tapa na cara ver seu trabalho tratado dessa forma irresponsável e grosseira.
E então, como The Guardian fez isso de forma tão errada? Primeiro, porque os redatores dos títulos foram além dos dados para criar uma mensagem simples, pequena e imprecisa. Segundo, porque fundiram dois assuntos que deveriam ser mantidos separados: o estudo em si, sobre efeitos dos hormônios prenatais em crianças com desenvolvimento típico; e o assunto teste do autismo. Enquanto a jornalista preocupou-se em deixar claro no seu artigo que eram assuntos separados, os redatores dos títulos e legendas ignoraram tais sutilezas e caíram para o sensacionalismo grosseiro.
Depois daquela semana, recebi uma chamada da assessoria de imprensa da Sociedade Britânica de Psicologia, preocupados se seu press release sobre nosso estudo teria levado a esse erro. Reassegurei que eles não tinham feito nada de errado. O assessor de imprensa estava preocupado sobre como outros jornais, revistas e websites tinham repetido os títulos do The Guardian. Também estavam preocupados com que cientistas poderiam negar-se a falar com jornalistas e queriam levar a discussão do assunto na sua revista, The Psychologist.
Isso me pôs a pensar: quem seriam os redatores dos títulos? Artigos e colunas dos jornais são assinados e assim há uma certa responsabilidade quando erram. Neste caso, um anônimo redator de títulos parecia ser o culpado. Teria ele ou ela realmente lido o artigo da jornalista?
Cientistas são fiscalizados por comitês de ética porque podem causar danos ao público. A mídia também tem o mesmo potencial. Deveria haver alguma regulamentação antes-do-evento similar aqui também?
Deveria a mídia ser tão controlada quanto os cientistas, uma vez que também pode causar prejuízos?
Perfil
Simon Baron-Cohen é diretor do Centro de Pesquisa de Autismo (Autism Research Centre) da Universidade de Cambridge. Para seu PhD, trabalhou com a psicóloga Uta Frith na teoria de que o autismo traz dificuldades para entender outras mentes. Ele argumenta que o autismo é uma forma extrema de "cérebro masculino" (A Diferença Essencial, Objetiva, 2004). Seu último livro é Autism and Asperger Syndrome: The facts (OUP).
Media distortion damages both science and journalism
http://www.newscientist.com/article/mg20127011.300-media-distortion-damages-both-science-and-journalism.html
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