quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O potencial oculto das crianças autistas

O que os testes de inteligência podem mostrar quando se trata de autismo

| Rose Eveleth | Scientific American | 30/11/2011 |


Quando eu estava na quinta série, meu irmão Alex começou a corrigir a minha lição de casa. Isto não teria sido estranho, se ele não estivesse no jardim de infância e fosse autista. Essa desordem, caracterizada por comportamentos repetitivos e dificuldades com a interação social e a comunicação, tornava difícil para ele prestar atenção nos professores. Freqüentemente, era expulso da classe por não ser capaz de se sentar durante mais de alguns segundos de cada vez. Mesmo agora, quase 15 anos depois, ele apenas consegue rabiscar seu nome. Mas ele poderia olhar para minha página com palavras cuidadosamente escritas ou problemas de matemática e apontar quais estavam errados.

Muitos pesquisadores começam a repensar o quanto realmente se sabe sobre as pessoas autistas e suas habilidades e estão chegando à conclusão de que podemos estar subestimando o que são capazes de contribuir para a sociedade. O autismo é um espectro com duas extremidades muito diferentes. Em um extremo está o "alto funcionamento" de pessoas que muitas vezes têm empregos, amigos e podem se dar bem no mundo. Na outra, o "baixo funcionamento", é de pessoas que não conseguem administrar a vida por conta própria. Muitos são diagnosticados com retardo mental e devem ser mantidos sob cuidado constante. Mas esses diagnósticos se concentram no que as pessoas autistas não podem fazer. Agora, um crescente número de cientistas se volta para o que as pessoas autistas têm de bom.

Pesquisadores consideram, há muito tempo, que a maioria das pessoas com autismo são mentalmente retardadas. Embora os números citados variem, geralmente apontam para 70 a 80 por cento da população afetada. Mas quando Meredyth Edelson, pesquisadora da Universidade Willamette, foi buscar a fonte das estatísticas, ficou surpresa por não conseguir encontrar nada definitivo. Muitas das conclusões se baseavam em testes de inteligência, que tendem a superestimar a incapacidade nas pessoas autistas. "Nosso conhecimento é baseado em belos dados ruins ", ela diz.

Este potencial escondido foi recentemente reconhecido por Laurent Mottron, um psicólogo da Universidade de Montreal. Em um artigo publicado em 3 de novembro na revista Nature, ele conta sua própria experiência ao trabalhar com pessoas autistas de alto grau de funcionamento em seu laboratório, o que lhe mostrou o poder do cérebro autista, em vez de suas limitações. Mottron conclui que, talvez, o autismo não seja realmente de todo uma doença, mas talvez apenas uma maneira diferente de olhar o mundo que deve ser valorizada, em vez de vista como patologia.

Tendo crescido com dois irmãos autistas - Alex, quatro anos mais novo que eu, e Decker, que tem oito anos a menos - as conclusão de Mottron me parecem verdadeiras. Como eu os assisti a percorrer as escolas públicas, tornou-se muito claro que havia uma grande diferença entre o que os professores esperavam deles e o que poderiam fazer. Claro, o autismo os limitava de certa forma, o que muitas vezes tornava a escola difícil; no entanto, também parecia lhes dar novas e úteis formas de ver o mundo, o que muitas vezes não aparece nos testes de inteligência normais.

Isso é porque o teste de inteligência em pessoas autistas é difícil. A pessoa média pode se sentar e fazer um teste administrado oralmente, cronometrado, sem grandes problemas. Mas para uma pessoa autista com capacidade de linguagem limitada, que pode facilmente se distrair com informações sensoriais, essa tarefa é muito difícil. O mais comum dos testes de inteligência normalmente administrados, a Escala Wechsler de Inteligência para Crianças (Wechsler Intelligence Scale for Children - WISC) parece quase destinada a reprovar uma pessoa autista: é um teste completamente verbal, cronometrado, que depende fortemente de conhecimento cultural e social. Ele pergunta coisas como "Qual é a coisa a fazer se você encontrar um envelope na rua, que é selado, endereçado e tem um selo colado?" ou "O que fazer se cortar seu dedo?"

Este ano Decker foi reprovado em um teste muito parecido com o WISC. A cada três anos, à medida que avança pelo sistema de ensino público, seu progresso é reavaliado como parte de seu Plano de Educação Individualizada, um conjunto de orientações destinadas a ajudar as pessoas com deficiência a alcançar seu objetivo educacional.

Este ano, como parte do teste, a mulher que lhe aplicava o teste lhe perguntou: "Você descobre que alguém vai se casar. O que é uma questão apropriada para lhes perguntar?"

A resposta do meu irmão: "Que tipo de bolo vocês terão?"

A aplicadora balançou a cabeça. “Não”, ela disse, “isso não é uma resposta correta. Tente novamente”. Ele franziu a testa da maneira que nós aprendemos a ser cautelosos - é a expressão que ele mostra um pouco antes de entrar em colapso e disse: "Eu não tenho outra pergunta. Isso é o que pergunto." E foi isso. Ele não iria dar-lhe outra resposta, e ela não iria avançar sem uma. Ele falhou na questão e nunca terminou o teste.

Um teste não precisa ser assim. Outras medidas, como as Matrizes Progressivas de Raven (Raven's Progressive Matrices) ou o teste de inteligência não-verbal (Test of Nonverbal Intelligence - TONI), evitam essas dificuldades comportamentais e de linguagem. Eles pedem às crianças que completem desenhos e padrões, com instruções não-verbais, na sua maioria. E ainda assim não são usados muitas ve\es.

Uma criança média, seja verbal ou não verbal, vai pontuar o mesmo percentil para estes testes. Mas uma criança autista não. Isabelle Soullieres, pesquisadora da Universidade de Harvard, fez, com um grupo de autistas, tanto o WISC quanto o teste de Raven, para medir a diferença entre os dois grupos. Embora já esperasse uma diferença, ficou surpresa com o quão grande ela foi. Em média, os alunos autistas foram 30 pontos percentuais melhor no teste de Raven do que no WISC. Algumas crianças saltaram 70 pontos percentuais. "Dependendo de qual teste você usa, você tem uma imagem muito diferente do potencial das crianças", diz ela. Outros estudos têm confirmado essa lacuna, embora tenham encontrado uma menor diferença entre os testes.

As crianças autistas de "alto funcionamento", com a versão menos grave da deficiência, não foram as únicas a ter a pontuação mais elevada. Soullieres realizou um estudo recentemente em uma escola para crianças autistas consideradas intelectualmente deficientes. Utilizando o teste de Raven, descobriu que cerca de metade delas pontuavam na faixa média da população em geral. "Para muitos daqueles que são considerados de baixo funcionamento, se lhes forem dados outros testes de inteligência, será encontrado um potencial escondido", diz ela. "Eles podem resolver problemas muito complexos, se você lhes der material com que possam otimizar o processo."

O que isto significa, diz ela, é que as escolas estão subestimando as habilidades de crianças autistas em todas as faixas do espectro. O uso difundido do WISC nas escolas tem ajudado a definir expectativas muito baixas para crianças autistas, assumindo que não serão capazes de aprender as mesmas coisas que a criança média. Com base nos resultados de testes, as pessoas chegam à conclusão de que as crianças autistas não conseguem aprender, quando talvez não aprendam da mesma maneira que as outras pessoas.

O potencial oculto de pessoas autistas parece cair em certas áreas - tarefas que envolvem reconhecimento de padrões, raciocínio lógico e escolha de irregularidades nos dados ou argumentos. Soullieres descreve o trabalho com uma mulher autista em seu laboratório, que pode apontar a menor falha na lógica. "No começo, nós argumentamos com ela", Soullieres ri, "mas quase sempre, ela está certa, e nós, errados."

Reconhecer esses talentos, ao invés de deixá-los de lado para focar as dificuldades do autismo, poderia beneficiar não apenas as pessoas autistas, mas as outras também. Mottron registra quanto sua ciência melhorou quando começou a trabalhar com parceiros de laboratório autistas. Tenho notas muito mais altas no meu dever de casa do que teria sem Alex, apesar de suas correções serem por vezes irritantes. E muitos pensam que seu potencial se estende além da ciência, até as outras profissões, se lhes for dada uma chance.

Só porque um teste diz que alguém tem potencial, isso não significa que é fácil de perceber. Professores de meu irmão Decker estão convencidos, e os testes confirmam - que ele tem um potencial oculto. Mas, na sala de aula, muitas vezes ele se perde ao tentar ouvir instruções e fica frustrado ao tentar acompanhá-los. "Não quer dizer que é fácil na vida cotidiana, ou que é fácil para os pais ou professores", diz Soullieres. "Mas isso mostra que eles têm esse potencial de raciocínio. Talvez tenhamos de começar a ensiná-los de um jeito diferente e parar de supor que não vão aprender."

Mais e mais pessoas estão começando a imaginar que jóias podem estar escondidas no cérebro autista. E, se meus irmãos servem de referência, se continuarmos a olhar, vamos encontrá-las.

The Hidden Potential of Autistic Kids
http://www.scientificamerican.com/article.cfm?id=the-hidden-potential-of-autistic-kids


Respeite este trabalho. Se for republicar algum texto, cite-nos como sua fonte e coloque um link: http://cronicaautista.blogspot.com/

5 comentários:

Renata Bonotto disse...

Amei o texto - amei pq ele põe em palavras tantas das minhas inquietações sobre o sistema escolar, sobre a relação autismo x deficiência (que eu sempre desconfio) e sobre os testes classificatórios (que ainda bem não são uma "praga" aqui no Brasil como é no EUA). Enfim, ele chega a uma conclusão que quem circula em ambiente escolar tb já se deu conta mesmo quando se pensa em educação de neurotípicos: talvez devessemos mudar a forma de ensinar! Obrigada por compartilhar a notícia.

Marco disse...

Concordo. Depois de ler bastante coisa desde o diagnóstico do Pedro, me comparando com ele em algumas situações, acredito nisso. Em que eles tem outra forma de ver o mundo e que suas que tem habilidades que outras pessoas não tem. Por isso acredito no desenvolvimento das habilidades, na maneira diferenciada de ensinar e potencializar o que eles tem de melhor. Essa maneira de ver e de agir ultrapassa a inclusão e mostra para o mundo que cada um é cada um, diferente uns dos outros mas todos podem contribuir para uma sociedade igual.

fatimarosa disse...

Neste texto encontrei comentários parecidos com a estória de vida de meu filho tbm asperger,e hj acontece com ele o mesmo jeito ele passou de uma criança super inteligente,á um adolecente atípico,mal sabe escrever o nome,mas calculos ele ainda consegue fazer,não frequenta +escola alguma,ás vzs ele me surpreeende pega uma revista e começa a ler outras vzs ele mal sabe diferenciar o alfabeto,gostaria mt de entender pq.isso acontece,será q.algum dia terei respostas?Espero q.sim.

F.Cristina disse...

A pontuação em testes é realmente questionável, mas não se pode apenas pensar em testes 'mais adequados' é preciso considerar que a pessoa com Autismo só vai se interessar em mostrar o que sabe quando houver desejo, ambiente, vínculo. Muitas vezes minha filha sabe algum conteúdo e quando questionada sobre ele, dá uma resposta totalmente inadequada, querendo chamar a atenção, provocar ou testar a reação de seu interlocutor ou simplesmente porque se recusa naquele momento a responder o que se espera.
ao contrário dos típicos que estão sempre querendo mostrar o que sabem, o que tem, a pessoa com autismo não se interessa em como o outro lhe vê, embora toda reação de terceiros lhes afete diretamente, não é o que o outro pensa que será a motivação de sua ação.

Mônica Cadorin disse...

Fantástico o texto. Concordo plenamente. Ficamos medindo as pessoas autistas com critérios de pessoas não-autistas. É como querer medir líquidos com uma régua, ou contar o tempo com um termômetro. Simplesmente não funciona.
Cris, minha filha se parece muito com a sua. :)